Confesso que fiquei indignado ao saber que hoje (dia 21/05) em Brasília, no Palácio do Planalto, com a presença do Presidente da República, dois bispos, alguns religiosos e religiosas e da bancada “católica” foi realizada a Consagração do Brasil a Jesus Cristo pelo Imaculado Coração de Maria.
Nesta mesma semana, na Itália, o ultraconservador Matteo Salvini também realizou um gesto semelhante, enquanto seu governo deixava pobres imigrantes naufragarem em alto mar. É um grande desrespeito com a Mãe de Jesus, ela que nunca entrou em nenhum palácio de governantes da sua época.
Talvez seja necessário resgatar a história que a Bíblia nos narra sobre quem foi Maria de Nazaré. Ainda jovem, ou adolescente, viu-se grávida quando ainda não era casada. Para evitar o apedrejamento teve que fugir às pressas (Lc 1,39). Ela sabia que “a lei das pedras” podia matá-la e matar também ao seu bebê.
Não sabemos com que meios Maria foi até Ain Karem, vilarejo próximo a Jerusalém, e lá encontrou sua parenta Isabel, onde sentiu-se acolhida (Lc 1,40-45). Cantou seu canto de alegria ao Deus da vida e que defende os pequenos e humildes. Profetizou contra os poderosos, dos saciados, os ricos e opressores (Lc 1,46-55). Por causa das políticas dos governantes da sua época, teve que viajar novamente, grávida, correndo o risco de abortar e viu seu filho nascer numa gruta junto aos animais, porque quem podia acolhê-la negou-lhe um lugar em sua casa (Lc 2,1-7). Não recebeu visitas de governantes, mas dos pobres pastores de ovelhas (Lc 2,8).
Logo depois, os governantes queriam matar seu filho. E teve que fugir para o Egito para salvar a vida do Menino Jesus (Mt 1,13-18). Voltando à sua cidade, viu Jesus crescer e se preparar para a missão. Deve ter ouvido o que outro governante (Herodes Antipas) fez com o precursor do Messias (o verdadeiro!). Herodes mandou cortar a cabeça de João Batista e oferecê-la como troféu numa bandeja (Mc 6,17-29). Maria acompanhou Jesus no anúncio do Reino de Deus, colocando-se ao lado dos pobres e marginalizados. Acompanhou o filho em sua peregrinação ao Templo onde denunciou o abuso que se fazia do lugar sagrado (Mc 11,11-19). Seu coração (o verdadeiro!) sofreu ao ver Jesus sendo preso, torturado e açoitado. Os governantes da época se uniram para condenar Jesus à pior de todas as condenações, à morte na cruz (Lc 23,12). Solidária, Maria acompanhou aquele trajeto até o Calvário e os últimos instantes da vida de Jesus (Jo 19,25). Difícil imaginar a dor de um coração de mãe ao ver o que faziam com seu filho.
Este coração de Maria sofreu com os governantes! E, por isso, não é justo o que fez hoje com o coração da Mãe de Jesus. O que se fez não foi colocar uma coroa de ouro em sua cabeça, mas uma coroa de espinhos, justamente por uma bancada hipócrita apoiando um governante cujas políticas são de morte. Governante que usa o símbolo da arma da morte e cujas políticas geram fome, desemprego, destroem políticas públicas, acaba com a educação e agora quer implantar esta reforma da previdência que será um inferno contra os pobres.
O coração de Maria hoje sofre como o coração de tantas mães que vêem seus filhos mortos precocemente (pelas armas que o presidente apóia); coração de mães que sofrem vendo seus filhos na droga ou nas ruas por não encontrarem trabalho; coração de mães que sofrem ao verem seus filhos morrendo de fome; coração de tantas mães negras, indígenas, que tanto sofrem! Aí está o verdadeiro coração da Mãe de Jesus!
O Brasil já foi consagrado à Nossa Senhora Aparecida, que adquiriu o rosto negro e pobre do povo brasileiro. Sua imagem resgatada num rio, sem a cabeça – como João Batista e como tantas mulheres escravas, cujos senhores abusavam sexualmente e ao perceberem que estava grávidas, cortavam seus pescoços e jogavam nos rios. É com este povo que Maria (a verdadeira!) se identifica.
Em toda a celebração realizada hoje, não foi mencionada nem sequer uma palavra sobre a grave situação em que este governante colocou o país. Os pobres, famintos e marginalizados – lembrados por Maria no Magnificat – também foram ignorados. Maria (a verdadeira!) teria nojo do banquete dos governantes de hoje. Repetiria como Jesus: “Não vos conheço!” (Lc 13,27).
Frei Ildo Perondi – Frade Capuchinho do Rio Grande do Sul, bliblista com Mestrado em Teologia Bíblica pela Universidade Urbaniana de Roma e doutorado pela PUC-Rio, professor na PUC-PR. Assessor Bíblico, CEBI, CEBs e Escolas Bíblicas para leigos.